Quarta-feira, 29 de Novembro de 2006

Passado, presente e futuro

Todos nós nascemos nus,

Do ventre de nossas mães,

Porém, depois de nascidos,

Já não somos iguais.

 

Uns com mimos são criados,

Outros com muita fartura,

Outros têm a desventura

De serem apostiçados.

 

Esta sorte já nos vem,

De nossos antepassados,

Uns nascem para ser felizes,

Outros para ser desgraçados.

 

Os pobres em pequeninos

Com os ricos estão brincando,

Às vezes vão apanhando

Dos ricos seus cachacinhos:

Chora o pobre sem carinhos,

Na sua tenra idade,

Tem o rico a liberdade

Dar ao pobre seu picão,

E se no pobre dá o rico

Não sai dali que o não pague.

 

Lá vai o pobre crescendo,

Com ele a miséria cresce:

Nunca tem o que carece,

Pobremente vai vivendo;

Mundo, mundo, não te entendo!

Não sei que pragas te bote,

Não somos iguais na sorte,

O pobre tem-lo marcado,

Que na vida é desgraçado,

E pouco feliz na morte.

 

Vai o pobre a um sermão,

Assim que à igreja entra,

Trás da pia da água benta

É o lugar que lhe dão;

Os ricos todos estão

Pelos bancos assentados,

Os pobres estão encostados,

Às paredes pelos cantos.

Só os pobres não têm bancos,

Em tudo são desgraçados.

 

Lá sai uma procissão,

Dá o mordomo as opas;

Aos ricos bota-lha às costas,

Mas aos pobres não lhas dão:

Metem-lhe às vezes na mão,

Os chapéus dos mais pimpões.

Vai o pobre aos trambolhões,

Na procissão envolvido,

Só para servir de cabido,

Aos chapéus dos figurões.

 

Vai o pobre com razão

Falar às autoridades,

Expõe as suas verdades

Sempre com chapéu na mão.

Não lhe dão grande atenção;

Começa o pobre a pedir.

Nunca o mandam cobrir,

Depois de lhe ter ouvido

O que o pobre tem pedido,

Vai-se embora por servir.

 

Chega o rico opulento

A pedir qualquer mentira,

Nem sequer o chapéu tira,

Mandam-no entrar para dentro

Dão-lhe todo o acatamento;

Entra o rico a pedir,

Começam todos a rir,

Depois de o ter ouvido,

Lá sai o rico servido

E o pobre por servir.

 

Por força pobre há-de ser

O que nasce para ser pobre,

Ainda que queira não pode

No mundo enriquecer

Nem o rico quer viver

Por desgraça ao pé do pobre

Anda sempre a ver se pode

Culpá-lo injustamente

Para lhe vender de repente

Os palheiros onde dorme.

 

Neste mundo quem é rico

Traz a glória consigo

Tem por lá muito amigo

Morrem uns, outros lhe ficam,

Mas o caso mais bonito

É que há-de morrer também,

Por cá não fica ninguém;

Depois, quando lá chegar,

Por fortuna há-de encontrar

Tanto como o pobre tem.

 

Dá-se às vezes um jantar

Em qualquer festa ou função,

Mas os pobres nenhuns vão,

Para a mesa particular,

Lá lhes dão outro lugar,

De bem menos estimação:

Às vezes falta-lhes o pão,

Outra vez tarda-lhes o vinho,

Mas o pobre coitadinho,

Vai comendo o que lhe dão.

 

Os ricos todos estão

Uns com outros misturados,

Dando vivas, engraçados:

Sempre com o copo na mão:

Lá vai um viva ao patrão,

Se é casado ou solteiro,

Lá vai outro ao cozinheiro,

Tocam os pratos então,

Espeta-se mais um rojão,

Grande coisa é ter dinheiro!

 

De que serve a geração,

Sem fazenda nem dinheiro?

Que importa ser cavalheiro?

Nem senhoria lhe dão.

Quem quiser ter estimação,

Viver no mundo arrogante,

Tenha dinheiro bastante,

Para viver com fantasia,

Que não lhe falta senhoria,

Ainda que seja marchante.

 

Ponde os olhos no Calheiros,

Que é de grande geração,

Nem senhoria lhe dão,

Dormindo pelos palheiros.

Que importa ser cavalheiros

Com a barriga a bambar?

De que serve passear

Com o nome de fidalgo,

Passando fome de algo

Com piolhos no colar?

 

Vai um pobre a um juramento,

Sejam pais, sejam filhos,

São testemunhas de quartilhos,

Não se lhe dá merecimento.

Vai o rico opulento,

Jurar mentiras, e maldades,

Todas as autoridades

Lhe mandam escrever o dito,

No cartório fica escrito,

As mentiras por verdades.

 

Rouba o pobre uma horta

As couves para um caldinho,

É já preso de caminho,

E atranca-se a porta,

Todos lhe viram cara torta,

Porque lhe não vêem dinheiro,

Lá morre no cativeiro,

O pobre sem livramento,

Mas ninguém tem sentimento

Por morrer um ratoneiro.

 

Tem qualquer rico roubado,

Roubos de consideração,

Esse não vai para a prisão:

Anda sempre afiançado,

Lá tem o irmão jurado

O parente e o amigo,

Traz bem dinheiro consigo,

Fala com os seus iguais,

Nas audiências gerais,

Fica sempre absolvido.

 

Ganham esses empregados,

Nas suas ocupações,

Ganham juízes e escrivães,

Senadores e deputados,

Só os pobres dos jurados,

Meses, e dias perdendo,

À sua custa metendo,

Se na algibeira o levar,

Se não há-de jejuar,

Mundo, mundo, não te entendo!

 

Onde há um Juiz de Direito,

Quando não um ordinário,

Vencendo o seu salário

Sentenciando tudo a eito,

Irá tudo mais bem feito;

Escusam de mandar chamar,

O lavrador só para dar,

Sentenças dum ratoneiro,

Pois as que rendem dinheiro,

Lá se dão noutro lugar.

 

Está qualquer pobre doente,

Não lhe assiste o cirurgião,

Não lhe paga tem razão,

Vai sofrendo tristemente,

Lá lhe dá um acidente,

Pede o pobre confissão,

Mas falta-lhe o capelão,

Ainda que o vão chamar,

Quando o vem confessar,

Mal lhe põe a extrema-unção.

 

Adoece qualquer rico,

Já correm os cirurgiões,

Médicos e capelães,

Nem os mezinheiros ficam,

Anda ali tudo num grito,

Nenhum deles sai de lá,

Com o sentido no chá,

E na tosta misturada;

Como o pobre não dá nada,

Se há-de morrer morra já.

 

Procura-se uma ervinha,

Faz-se mais um cozimento,

Assim vai passando o tempo,

Enquanto cheira a cozinha;

Vai-se cozer a mesinha,

Enquanto ela está quente,

Toma-se o pulso ao doente,

Deita a língua de fora,

Assim vai chegando a hora,

Do jantar que é excelente.

 

Francisco Pires Zinão (1786-?)

 

Copiado daqui: http://couramagazine.blogs.sapo.pt/


publicado por AC às 16:13

link do post

De tron a 16 de Dezembro de 2006 às 00:58
passado: pais decente
presente: uma pouca vergonha
futuro: revolução


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